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A Ampliação Cinematográfica de O Senhor dos Anéis

Resumo: A saga literária O Senhor dos Anéis, de J.R.R Tolkien foi um grande sucesso comercial, tendo conquistado centenas de leitores ao redor do globo e ostentando uma posição no ranking dos top 10 livros mais vendidos no mundo. Devido a qualidade, passou por um processo de transposição midiática para mídia cinematográfica. Nesse sentido, o presente trabalho busca, através da Intermidialidade e Comparatismo, analisar a transposição ocorrida, considerando que o filme é uma ampliação do que foi realizado no livro e não apenas mera reprodução, de modo que leituras diferenciadas podem ser realizadas (STAM, 2008). Por esta razão, não vislumbramos existir uma hierarquia entre as duas mídias, tampouco a ideia de fidelidade, uma vez que o texto de chegada, o cinema, é uma independente e totalmente nova (BANZIN, 1948; STAM, 2003; RIBAS, 2014), uma vez que sua estrutura apresenta particularidades próprias (HUTCHEON, 2013).

Palavras-chave: O Senhor dos Anéis; Transposição Midiática; Cinema.


Abstract: The literary saga The Lord of the Rings, by J.R.R Tolkien, was a great commercial success, having won hundreds of readers around the globe and boasting a position in the ranking of the 10 best-selling books in the world. Due to its quality, it went through a process of media transposition into cinematographic media. In this sense, the present work seeks, through Intermediality and Comparativeism, to analyze the transposition that occurred, considering that the film is an expansion of what was done in the book and not just a mere reproduction, so that different readings can be carried out (STAM, 2008). For this reason, we do not envisage there being a presentation between the two media, nor the idea of ​​fidelity, since the target text, cinema, is independent and totally new (BANZIN, 1948; STAM, 2003; RIBAS, 2014), since its structure has its own particularities (HUTCHEON, 2013).

Keywords: The Lord of the Rings; Media Transposition; Movie theater.


O Senhor dos Anéis

Introdução


A saga literária "O Senhor dos Anéis," de J.R.R. Tolkien, é uma obra que transcendeu as páginas de um livro para se tornar um fenômeno global. Com seu sucesso comercial, conquistou inúmeras mentes ao redor do mundo e se estabeleceu como um dos livros mais vendidos em todo o planeta. No entanto, seu alcance não se limitou apenas às páginas impressas. A saga passou por uma notável transposição midiática para o mundo do cinema, um fenômeno que despertou a curiosidade de estudiosos e entusiastas da obra. Este trabalho se propõe a analisar essa transposição por meio das lentes da Intermidialidade e do Comparatismo, reconhecendo que o filme não é meramente uma reprodução do livro, mas sim uma ampliação. Não buscamos estabelecer hierarquias entre as duas mídias, nem adotamos a ideia de fidelidade estrita, pois entendemos que o cinema, como texto/mídia de chegada, assume uma identidade independente e totalmente nova, enriquecendo a experiência do público. Ao explorar as particularidades da estrutura cinematográfica, este estudo visa lançar luz sobre as múltiplas facetas dessa obra icônica que continua a cativar gerações.

O africano John Ronald Reuel Tolkien, mais conhecido por J. R. R. Tolkien, foi um importante escritor de literatura fantástica do século XX. Mesmo com o sucesso de suas obras e tendo ganhado diretamente da Rainha Elizabeth II o título de Comendador, não abandonou sua carreira acadêmico, Doutor em Letras, Tolkien continuou a lecionar em Oxford, tradicional instituição inglesa.  Suas obras mais conhecidas são O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Senhor dos Anéis não destoa do padrão das obras do mesmo gênero, a inovação de Tolkien reluz na medida em que cria com perfeição um mundo totalmente nova e extremamente detalhado, no qual um hobbit em poder de um anel maligno precisa destruí-lo, no entanto, diversos impasses surgem até que isso aconteça.

Frente ao exposto, o artigo propõe uma análise da transposição midiática do livro para o filme, o que será feito sem estabelecer hierarquias entre uma mídia e outra, para tanto comporá a espinha teórica do trabalho Stam (2003, 2008), Hutcheon (2013), Bazin (1948) entre outros que servirão para substanciar a discussão.


Fantástico e insólito ficcional


A grande parte das pessoas cresce imersa em narrativas, concebendo mundos diversos da realidade que nos cerca, cenários onde dragões, duendes, fadas ou até mesmo o vazio podem existir. Evidentemente, a literatura se erige como a passagem por meio da qual esses lugares desconhecidos podem ser explorados. Assim, nos deparamos com o gênero da fantasia, cujo traço distintivo primordial é a existência de um universo distinto do familiar, repleto de suas próprias leis naturais. Nesse contexto, não há justificativa para considerar a ausência de lógica na construção desses mundos, uma vez que a coerência a ser seguida é intrínseca a esse cenário.

Com a convicção de que a construção de um novo universo e novos seres pode tangenciar o campo sobrenatural, é crucial compreendermos o insólito ficcional e o fantástico. O insólito se caracteriza por eventos estranhos presentes em narrativas (não exclusivamente) não miméticas. A categoria do maravilhoso, o estranho, o realismo maravilhoso, o realismo fantástico, o absurdo, os contos de fada, a ficção científica, as distopias, as utopias, o terror, o horror - todos esses gêneros, em diferentes graus, incorporam a dimensão do insólito. García (2019, não paginado) explica que

O vocábulo insólito, formado por derivação prefixal a partir de sólito, o qual significa, em linhas gerais, usado, habitual, costumeiro, frequente, ocorre nas línguas neolatinas tanto como adjetivo, quanto como substantivo, denotando, negativamente, além dos sentidos opostos àqueles expressos por sua construção afirmativa, extraordinário, raro, singular, incomum, estranho, que não se espera etc. Trata-se, portanto, da forma originada pela anteposição do prefixo in-, o qual indica, primeiramente, negação, podendo, ainda, apontar para lugar ou expressar a ideia de movimento para dentro. A gênese de sólito e, por conseguinte, de insólito, encontra-se no verbo transitivo e intransitivo soer, que, no mais geral, diz ter por costume, ser frequente.

O insólito emerge "dentro do próprio seio do universo racional das coisas, surgindo o 'incoerente' com esse reino, aquilo que chamamos de insólito." (OROPEZA, 2006, p. 58). É, portanto, algo atípico ou incoerente quando contrastado com o universo tal como o conhecemos. Logo no inicio do capítulo I de O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anél, primeiro livro da trilogía, Tolkien já nos apresenta de forma sutil o insólito quando a primeira informação do livro é justamente a festa de comemoração do onzentésimo aniversário de um personagem.

Quando o Sr. Bilbo Bolseiro de Bolsão anunciou que em breve celebraria seu onzentésimo primeiro aniversário com uma festa de especial grandeza, houve muito comentário e agitação na Vila dos Hobbits. Bilbo era muito rico e muito peculiar, e tinha sido a atração do Condado por sessenta anos, desde seu notável desaparecimento e inesperado retorno. [...] O tempo passava, mas parecia ter pouco efeito sobre o Sr. Bolseiro. Aos noventa anos, parecia ter cinquenta. Aos noventa e nove, começaram a chamá-lo de bem-conservado; mas inalterado ficaria mais próximo da realidade. (TOLKIEN, 2009, p. 21)

  Para Tzvetan Todorov (1981, 2013), o fantástico ocorre quando em uma narrativa temos um acontecimento sobrenatural que gera uma dúvida no leitor e na personagem que o presencia. Cabe; portanto, ao leitor exercer sua própria interpretação a respeito do acontecimento, uma vez que, no texto literário, não haverá qualquer resposta nesse sentido, sendo conveniente ignorar “tanto a interpretação alegórica como a interpretação poética” (TODOROV 2004, p. 39).

Emerge, principalmente, uma dúvida evidente. Essa hesitação não se limita apenas à personagem que se encontra perplexa sobre o que ouviu, questionando se está imersa em um sonho ou se está adormecida. Esse cenário também se estende ao leitor, que, ao final da narrativa, se depara com a necessidade de escolher entre uma das explicações: Alvare adormeceu e entrou em um sonho. Alvare se envolveu com o diabo, que se disfarçou de uma mulher bela ou sílfide. Importa relembrar que o evento fantástico acontece dentro do mundo real, tal como o reconhecemos, logo “sem diabos, sílfides, vampiros” (TODOROV, 2013, p. 148).

Nesse sentido, ocorre um acontecimento sobrenatural, insólito, mas que, de acordo com as regras naturais conhecidas pelo homem, não é possível explicar. Desta feita, “O Fantástico ocupa o tempo dessa incerteza e ambiguidade; assim que escolhemos uma ou outra resposta saímos do fantástico para entrar num gênero vizinho [...]” (TODOROV, 2013, p. 148).

Sob a perspectiva de Todorov, dependendo da decisão tomada, podemos ser conduzidos a outros dois gêneros que se originam do cenário fantástico. Se o evento sobrenatural é esclarecido conforme as regras do mundo real, então estamos diante do estranho. Contudo, a identificação das pistas presentes no texto não é uma tarefa exclusiva do leitor. De acordo com Todorov (2013), a indecisão não afeta somente o leitor da obra, mas também o personagem que enfrenta essa situação. Consequentemente, é imprescindível que o próprio personagem também desvende as respostas para o evento - alegadamente - sobrenatural.

Todorov (1981) classifica como fantástico-estranho “Os acontecimentos que com o passar do relato parecem sobrenaturais, recebem, finalmente, uma explicação racional. (p. 25)”. Que difere do estranho-puro na medida em que

Nas obras pertencentes a esse gênero, relatam-se acontecimentos que podem explicar-se perfeitamente pelas leis da razão, mas que são, de uma ou outra maneira, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos [...] (TODOROV, 1981, p. 26).

A distinção entre esses dois modos de estranheza é sutil, demandando atenção e base teórica substancial para que o analista possa percebê-la. Além disso, outra diferença se manifesta quando o fantástico-estranho introduz uma explicação plausível para o fenômeno (GAMA-KHALIL, 2013). Outrossim, o maravilhoso emerge quando nem o leitor implícito nem as personagens apresentam qualquer sensação de estranheza diante do evento sobrenatural, uma vez que o universo retratado nesse contexto é regido por leis distintas das nossas. Em O Senhor dos Anéis, Tolkien logo explica a questão etária ligada à personagem Bilbo. A obra é iniciada criando já essa estranheza (o insólito) e logo depois já esclarece o incomum através de uma explicação plausível de acordo com as leis do universo criado. Uma personagem apresenta uma idade elevada incompatível tanto com o mundo real como com o mundo da ficcional (uma vez que as outras personagens estranham essa idade). No capítulo seguinte, o autor explica esse estranhamento a associando a um objeto mágico. Nesse momento, fica evidente que a obra está inserida no gênero fantástico[1]. Além disso, uma informação que no primeiro momento parece pouco importante, se eleva a uma consequência do uso do objeto em torno do qual toda a narrativa se desenrola.

— Muito sábio — disse Gandalf — Mas quanto à sua vida longa, Bilbo nunca a relacionou ao anel. Considerou que os méritos eram dele mesmo, e tinha muito orgulho disso. Mas estava ficando inquieto e impaciente. Fino e esticado, dizia. Um sinal de que o anel estava tomando controle (TOLKIEN, 2009, p. 49).

A delimitação proposta por Todorov acaba deixando de fora certos textos literários mais contemporâneos. Nesse contexto, a abordagem mais eficaz é considerar o elemento fantástico não como um gênero fixo, mas como um modo de expressão, já que classificá-lo puramente como gênero acaba restringindo a rica diversidade literária que existe (BESSIÉRE, 2001; GAMA-KHALIL, 2013). Conforme Bessière (2001) sugere, a noção de um gênero estritamente fantástico não se sustenta, uma vez que carecemos de uma definição concreta que o caracterize, assim como não existe uma fronteira rígida que delimite os seres presentes nesse domínio. Ceserani nos apresenta alguns elementos e procedimentos que estão presentes (não só) no modo fantástico, quais sejam:

1) posição de relevo dos procedimentos narrativos no próprio corpo da narração; 2) a narração em primeira pessoa; 3) um forte interesse pela capacidade projetiva e criativa da linguagem; 4) envolvimento do leitor: surpresa, terror, humor; 5) passagem de limite e de fronteira; 6) o objeto mediador; 7) as elipses; 8) a teatralidade; 9) a figuratividade; 10) o detalhe (CESERANI, 2006, p. 68-76)

Em relação aos sistemas temáticos por estarem "bastante ligados por relações estreitas com os procedimentos que enumereis [...] alguns dos temas ou núcleos temáticos mais difundidos e praticados pela literatura fantástica" (CESERANI, 2006, p. 77), o autor nos apresenta os seguintes:

1) a noite, a escuridão, o mundo obscuro e as almas do outro mundo; 2) a vida dos mortos; 3) o indivíduo, sujeito forte da modernidade; 4) a loucura; 5) o duplo; 6) a aparição do estranho, do monstruoso, do irreconhecível; 7) o Eros e as frustrações do amor romântico; 8) o nada. (CESERANI, 2006, p. 77-88).

Uma passagem específica de O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei retoma alguns elementos destacados por Ceserani. No trecho selecionado, Aragorn caminha para as sendas dos mortos, onde encontrará um grupo de espíritos de soldados mortos liderados por um rei que fugiu da batalha quando no passado foram recrutados. É possível perceber a escuridão e o mundo obscuro (uma vez que eles se encontram abaixo da montanha), a vida dos mortos, o indivíduo, sujeito forte (já que Aragorn é o único capaz de reivindicar o auxílio do exército), o duplo (Aragorn é o rei corajoso e escolhido, enquanto o rei sob a montanha é o rei falho) e a aparição do estranho, do monstruoso.

Apesar disso, antigas lendas, agora raramente contadas, têm algo a reportar. Se essas histórias antigas, que passaram de pai para filho na Casa de Eorl, falam a verdade, então a Porta sob a Dwimorberg conduz a um caminho secreto que passa por baixo da montanha e se dirige para algum fim esquecido. Mas ninguém jamais se aventurou a entrar para vasculhar seus segredos desde que Baldor, filho de Brego, passou pela Porta e nunca mais foi visto entre os homens. Ele fez um juramento temerário, ao esvaziar o chifre naquele banquete que Brego fez para consagrar o recém-construído palácio de M eduseld, e ele jamais chegou ao trono do qual era herdeiro. As pessoas dizem que os Homens Mortos, dos Anos Escuros, guardam o caminho e não permitem que nenhum homem vivo penetre seus salões ocultos; mas algumas vezes eles próprios podem ser vistos saindo da Porta como sombras e descendo a pedregosa estrada. Então o povo do Vale tranca as portas e cobre as janelas, sentindo medo. Mas os Mortos raramente saem, e só em horas de grande inquietação ou quando a morte se aproxima (TOLKIEN, 2009, p. 59).

De forma clara, o que se desenrola em O Senhor dos Anéis é uma realidade fabricada, o que, por sua vez, requer que o leitor aceite o contrato proposto pela obra. A sensação de estranheza que novas criaturas e realidades podem suscitar emerge da liberdade inerente à literatura (CANDIDO, 2023). Nesse viés, Lembra-nos Eagleton que devemos "submissão à autoridade do narrador [...] Não estão necessariamente exigindo que acreditemos [...] seria mais preciso afirmar que nos pedem para fingir" (EAGLETON, 2021, p. 87, grifo nosso).


A traição entre mídias


Dentre os gêneros literários existentes, a fantasia tem se mostrado essencialmente transmidiático (SOUZA; REBELLO, 2022) por sofrerem constantemente transposição da mídia livro para a mídia cinematográfica “Para começar, fantasia é um gênero transmidiático, como é ilustrado pela saga de O senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien e sua recente adaptação para o cinema” (LAETZ; JOHNSTON,2008, p. 162). A transposição tem um importante papel na divulgação e na manutenção de obras literárias (BANZIN, 1948). Sendo que muito desses produtos, tais como O senhor dos Anéis e Harry Potter, podem ser compreendido não apenas como uma cultura popular, mas como uma meta cultura popular. A diferença entre uma e outra se dá na forma de circulação dos produtos. A cultura popular acontece quando uma pessoa tem acesso ao filme, mas não a literatura, ao passo que a meta cultura popular acontece quando alguém ouve uma música, ou vê um brinquedo e associa diretamente ao livro e filme, mesmo sem ter tido contato com essas mídias (NEIMEYER, 2004).

No cinema essa relação está ligada ao advento do fenômeno chamado por cinema High Concept, florescido após o movimento cinematográfico estadunidense denominado Nova Hollywood. O High Concept teve início com Tubarão, filme de 1975 de Steven Spielberg, mas foi de fato estabelecido como tendência com a franquia Star Wars e seu filme de estreia, Uma Nova Esperança, de 1977 e dirigido por George Lucas. O High Concept pode ser entendido como uma rede, onde o filme funciona tanto como entretenimento passível a lucro, como vitrine para venda de produtos ligados a ele, como bonecos, chaveiros, roupas, livros, fantasias, canecas, álbuns de figurinhas, revistas com curiosidades (MASCARELLO, 2012, p. 337). Essa tendência fez com que vários filmes fossem lançados com o intuito de realizar vendas que fossem além do filme, além de gerar lucros astronômicos através de direitos autorais, tornando-se verdadeiras transmídia (RYAN, 2015).

É relevante reconhecer que um livro e um filme representam mídias distintas, cada uma com suas próprias características, peculiaridades, capacidades e metas. Em outras palavras, cada um possui uma linguagem própria, uma forma de se conectar com o seu público. Ambos possuem a habilidade de evocar emoções, narrar histórias cativantes e incitar pensamentos reflexivos. É viável apreciar tanto a profundidade literária de um livro - permitindo-nos imaginar mundos possíveis - quanto a interpretação visual e auditiva proporcionada por um filme. É imperativo reconhecer que se tratam de expressões artísticas diferentes, cada uma com seu próprio mérito.

A discussão acerca da superioridade do livro em comparação ao filme, bem como da fidelidade na adaptação, constitui um debate abrangente que permeia tanto o senso comum quanto o crítico. É essencial reconhecer que essa questão está sujeita às preferências individuais e às expectativas de cada pessoa. É fundamental compreender que todas as formas de mídia, tanto a fonte quanto a derivada, são intrinsecamente originais e não têm a obrigação de serem adaptações fiéis, simplesmente por não deverem isso a mídia fonte porque o comparatismo adotado não alimenta dependência entre as partes em diálogo, que não pretende hierarquizar uma narrativa sobre a outra, e não trabalha com a eleição de um texto matricial (modelo) a ser “fielmente” seguido pela sua dita reprodução. (RIBAS, 2014, p. 119)

Não é obrigatório ter lido o livro para compreender o filme, e é importante rejeitar a ideia de uma narrativa prevalecer sobre a outra. Nesse contexto, o objetivo não é eleger um texto-fonte para uma reprodução fiel, tampouco validar uma adaptação cinematográfica com base em sua fidelidade ao texto literário original. Dessa maneira, torna-se possível explorar as múltiplas oportunidades de diálogo entre essas expressões artísticas e valorizar as distintas contribuições que cada uma tem a oferecer.

Para Robert Stam “[...] a ideia de adaptação como tradução sugere um empenho baseado em princípios de transposição semiótica, com as inevitáveis perdas e ganhos, típicos de qualquer tradução” (2000, p. 62). É evidente que o autor trata de maneira orgânica algo que algumas pessoas consideram um desafio: a inclusão ou exclusão de elementos ao adaptar uma obra para uma outra mídia. É entendível que ocorram omissões ou acréscimos nesse processo devido à genuína necessidade de criar narrativas singulares em meios diversos. Apesar dos avanços tecnológicos e dos recursos atualmente à disposição na indústria audiovisual, a adaptação de cenas literárias para produções televisivas ou cinematográficas pode deparar-se com desafios significativos. Um dos principais fatores que moldam as escolhas do diretor é o orçamento destinado à criação dessas obras. Filmes que não se inserem no domínio de Hollywood frequentemente enfrentam restrições financeiras, chegando até mesmo ao ponto de terem suas produções interrompidas. Esse cenário tem se tornado cada vez mais comum, inclusive em séries produzidas pela Netflix.

A abordagem de Hutcheon (2013) reforça a intrincada natureza desse procedimento de adaptação, sublinhando a importância de compreender as ramificações culturais e comunicativas nele presentes. Ao migrar uma obra de um meio para outro, é inevitável que haja modificações e reorganizações, dado que cada mídia carrega suas próprias normas e potencialidades de expressão. Destarte, torna-se necessário reconhecer que as adaptações não podem ser vistas como meras reproduções literais e fiéis, mas sim como interpretações criativas que reconfiguram e ressignificam a obra original para atender às particularidades da nova mídia. Dessa forma, é crucial reconhecermos que uma obra não deve ser rapidamente julgada como infiel ou carente de mérito apenas porque sua versão audiovisual não reproduziu integralmente o conteúdo do texto literário. Cada adaptação constitui uma criação distinta, uma interpretação criativa que se apoia na fonte original, mas também se molda conforme as particularidades da nova mídia. Essas mudanças oferecem a chance de explorar perspectivas inéditas, enriquecendo a experiência do público de maneiras singulares. Ao se transformar em uma obra distinta, a adaptação ganha sua própria aura de originalidade.


A Formulação do filme: narrativa, decupagem e mise-en-scène


No caso específico, coube à equipe artística liderada pelo diretor Peter Jackson, realizar e escolher os meios concernentes à adaptação. Antes de mais nada, o que deveria ser discutido e decidido é o que deveria ser passado para a tela, quais os elementos que deveriam permanecer, ser removidos e ser modificados. Algumas escolhas ficaram evidentes quando assistimos o objeto finalizado. Peter Jackson optou por uma narrativa linear, respeitando o próprio estilo de Tolkien, que além disso, utilizava um narrador onisciente.

Em grande parte, este livro trata de hobbits, e através de suas páginas o leitor pode descobrir muito da personalidade deles e um pouco de sua história. Informações adicionais podem ser obtidas na seleção feita a partir do Livro Vermelho do M arco Ocidental, já publicada sob o título de O Hobbit. Essa história originou-se dos primeiros capítulos do Livro Vermelho, escritos pelo próprio Bilbo, o primeiro hobbit a se tornar famoso no mundo todo, e chamados por ele de Lá e de Volta Outra Vez, porque relatavam a sua viagem para o Leste e sua volta: uma aventura que mais tarde envolveria todos os hobbits nos grandes acontecimentos daquela Era relatados aqui (TOLKIEN, 2009, p. 1).

  Com as primeiras palavras do primeiro capítulo do livro (no original, Concerning hobbits), Tolkien já evidencia que o mais importante em sua narrativa é a própria história, e por isso, se coloca como um narrador onisciente daqueles acontecimentos. Tolkien nunca se importou em suas obras com reviravoltas, mas sim em mostrar absoluto conhecimento e domínio sobre o mundo criado. A narrativa de O Senhor dos Anéis remete o leitor a uma história antiga que é contada de geração em geração. Essa forma narrativa foi mantida por Peter Jackson. No entanto, ao invés de escolher uma voz neutra, ele escolheu as vozes dos personagens que estariam ligados aos poucos momentos narrados do filme. Na abertura, quando os eventos antigos desde à criação dos anéis mágicos à derrota de Sauron, os acontecimentos são narrados pela personagem Galadriel. Mais tarde, é descoberto que ela é o ser vivo mais antigo da Terra-Média. A narração dos tais antigos eventos de importância ímpar serem narrados pela personagem mais antiga daquele universo, atribui caráter mitológico à narrativa. Vale ressaltar que a palavra “mito” por nós utilizada não está de forma alguma relacionada a algo mentiroso ou irreal, mas sim a algo primordial, que conta as histórias dos princípios. Se elas são reais ou não, não é relevante, pois nelas os seres acreditam. Uma excelente definição de mito, definição essa por nós utilizada, pode ser encontrada nas palavras de Mircea Eliade:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio". Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos "primórdios". [...] o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma "história verdadeira", porque sempre se refere a realidades. O mito cosmogônico é "verdadeiro" porque a existência do Mundo aí está para prová-lo (ELIADE, 2016, P 11, 12).

  Ainda que a pouca narração escolhida por Peter Jackson não seja de um narrador onisciente, tal como Tolkien utilizava, ela ainda mantém a característica básica da obra tolkieniana: dar caráter mitológico à história.

        Essa pode ser considerada uma primeira escolha em relação à adaptação. Um segundo elemento que foi nitidamente escolhido foi o desenvolvimento da narrativa basicamente em torno da jornada e Frodo com o anel. Em detrimento disso, vários acontecimentos foram condensados ou omitidos. Marcio Serelle (2023) lembra que "Bazin, conhecido pela defesa da relação entre o cinema e as outras artes, posiciona-se, neste texto, a favor da adaptação condensada, que, segundo ele, facilita o acesso do público mais amplo à arte literária" (p. 22). Além da facilitação de acesso, a condensação pode potencializar a obra (HUTCHEON, 2013). Em consonância Roberto Stam diz que “todos os cineastas condensam acontecimentos de um romance numa adaptação, nem que seja para se adequar às normas da exibição convencional nos cinemas” (2000, p. 57). Essas reduções não significam que existe algo faltando, está de acordo com o requerido pela mídia. 

Na cena inicial, com o objetivo de acelerar a história para enfim apresentar o protagonista, vários detalhes da história foram suprimidos. Alguns personagens importantes também desapareceram, como Glorfindel, o elfo que ajuda Frodo a fugir dos cavaleiros negros (Arwen aparece em seu lugar), Celeborn (de Lothlorien) e Tom Bombadil, personagem icônico do universo da Terra-Média. Quanto ao calendário, a equipe de roteiristas (Peter Jackson, Fran Walsh e Philippa Boyens) resolve não o utilizar. Tudo isso cria um senso tanto de protagonismo em torno de Frodo (pois diminui a quantidade de personagens relevantes) como também cria um senso de urgência em torno de sua missão. No exemplo a seguir é possível perceber como o tempo passa no livro sem que Frodo suspeite que o anel que ele naquele momento possuía era de fato o Um Anel, pertencente anteriormente a Sauron.

— O tempo passou, com muitas apreensões, até que minhas dúvidas despertaram de novo, transformando-se num medo repentino. De onde vinha o anel do hobbit? O que, se minhas dúvidas fossem fundadas, deveríamos fazer com ele? Essas coisas eu tinha de decidir. Mas não falei a ninguém de meus temores, sabendo do perigo de uma menção inoportuna, caso chegasse aos ouvidos errados. Em todas as longas guerras contra a Torre Escura, a traição sempre foi nosso maior inimigo. Isso foi há dezessete anos. Logo soube que espiões de toda sorte, até animais e pássaros, reuniam-se em torno do C ondado, e meu medo cresceu. Pedi o auxílio dos dúnedain, que redobraram sua vigilância; abri meu coração para Aragorn, o herdeiro de Isildur (TOLKIEN, 2009, p.266).

No livro, isso é revelado no conselho de Elrond. No filme, tudo acontece no mesmo dia que a história é iniciada. Bilbo, sob conselho de Gandalf, deixa o anel para Frodo. Depois tudo ocorre rápido, Gandalf já sabe que o anel é na verdade o Um Anel, e já envia Frodo para a sua jornada, deixar o Condado com o artefato e encontrá-lo na aldeia de Bri.

       Tendo os roteiristas optado pelos elementos que enaltecessem Frodo, eles criaram uma narrativa muito mais centrada nesse personagem do que o próprio Tolkien criou. Eles criaram um Frodo que é o microcosmo dentro do macrocosmo, o herói dentro do seu universo. Em outras palavras, eles pensaram na narrativa de O Senhor dos Anéis dentro dos paradigmas definidos por Joseph Campbell como a jornada do herói.

Antes de analisarmos a jornada de Frodo sob a perspectiva da jornada do herói de Joseph Campbell, é importante entender que o conceito de jornada do herói está relacionado aos mitos e ao inconsciente coletivo, conforme descritos por Mircea Eliade e Carl Gustav Jung. Eliade acreditava que os mitos são histórias sagradas que explicam a origem do mundo humano, enquanto Jung identificou imagens arquetípicas no inconsciente coletivo que são compartilhadas por todas as pessoas, independentemente de sua cultura ou tempo. Isso estabelece a base para a compreensão da jornada do herói como uma narrativa universal que explora temas arquetípicos.

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes, [...] os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos. [...] Minha tese é a seguinte: à diferença da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema psíquico, de caráter coletivo, não-pessoal. ao lado do nosso consciente, que por sua vez é de natureza inteiramente pessoal e que – mesmo quando lhe acrescentamos como apêndice o inconsciente pessoal – consideramos a única psique passível de experiência. O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tomar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência (JUNG, 2014, p. 51-52).

Para Jung, os vários mitos, religiões e ritos existentes são oriundos da mesma herança psíquica e essa herança psíquica. As imagens anímicas primitivas, ou seja, os conteúdos do inconsciente, são chamadas por Jung de arquétipos (JUNG, 2014, p. 12) e um desses arquétipos é o arquétipo do herói (JUNG, 2014, p. 15).[2]

Os mitos são para Jung, como já abordado, estruturas narrativas de caráter abstrato e os elementos presentes nessas estruturas são os arquétipos. Joseph Campbell segue o pensamento junguiano, mas destaca o arquétipo do herói. Para Campbell, o herói é o microcosmo dentro do macrocosmo (o universo do mito), sendo ele o responsável para a manutenção dos valores presentes na sociedade. Ele, “como encarnação de Deus, é o centro do mundo, o ponto umbilical através do qual as energias da eternidade irrompem no plano temporal (CAMPBELL, 2007, p. 46). O herói é o reflexo do contexto maior, o microcosmo do universo, mas, ainda assim, completo como totalidade desse universo. O herói, ao passar pelas suas provações, alcançando sua redenção, nascendo ou morrendo, revela uma parte do mundo ao atravessar cada uma dessas etapas. O herói sempre pensa estar na presença de sua própria essência, pois ele tem o olho do aprimoramento para ver. Portanto, assim como o caminho da participação social pode levar, no final, a uma percepção do todo no indivíduo, assim também o exílio leva o herói a encontrar o eu em tudo (CAMPBELL, 2007, p. 371). Toda essa questão em torno do herói está presente no cerne dos ritos de passagem, que funcionam como uma revivificação da jornada do herói e do mito. Não pretendemos nos estender em expor inúmeros exemplos de assimilações entre ritos já levantados de forma convincente por Campbell. Ao invés disso, abordaremos os ritos resumidamente como separação-iniciação-retorno sob o viés do arquétipo do herói, uma vez que ele é o agente responsável por aproximar o indivíduo do rito em questão.

O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno – que pode ser considerada a unidade nuclear do monomito. (CAMPBELL, 2007, p. 36) [...] O Herói [...] é o centro do mundo, o ponto umbilical através do qual as energias da eternidade irrompem no plano temporal. Portanto, o Centro do Mundo é o símbolo da contínua criação: o mistério da manutenção do mundo através do contínuo milagre de vivificação que brota no interior de todas as coisas. (CAMPBELL, 2007, p. 45)

Assim descreve Joseph Campbell sua teoria, o monomito, que, como mencionado no trecho acima apresentado, se debruça sobre a jornada do herói e, como ela, é intrínseca a toda grande história ou mito. Vale ressaltar que o termo anteriormente já fora empregado por autores precursores a Campbell, com destaque para James Joyce, em seu conto Finnegan's Wake (apud CAMPBELL, 2007, p. 53), embora não desenvolvida de forma teórica. Campbell apropria-se do termo já existente, que abarcaria toda a questão levantada pelo autor acerca da universalização do mito, tendo como premissa os estudos teóricos da psicologia. Em contribuição a isso, o autor realizou um rico levantamento de lendas e ritos feitos enquanto visitava inúmeras culturas ao redor do mundo que resultou em uma significativa recolha de mitos até então desconhecidos (ou pouco conhecidos) no mundo acadêmico. 

Resumidamente, no tocante ao herói, na literatura ele é o centro da história narrada, o elo que nos une ao cosmos da obra; no mito é aquele que nos guia e, através de um processo simbiótico, nos faz pertencer àquele meio; na psicologia analítica é o eu que almeja a harmonia do cosmos interior, o que novamente configura um processo de simbiose. O herói é a estrutura nuclear do círculo, nesse caso entendido como o universo, aquele que atua como a personificação daquele mundo do qual faz parte. No cosmo há o herói, representando o microcosmo (CAMPBELL, 2007, p. 352) e o mundo no qual o herói vive, representando o macrocosmo (CAMPBELL, 2007, p. 359).

A jornada do herói configura o monomito, que por sua vez é representado por três atos bem distintos: o primeiro ato, representando a separação, nomeado como a partida; o segundo ato, a iniciação; e um terceiro ato, denominado de o retorno. Campbell ainda subdivide cada uma dessas grandes unidades em pequenos estágios. Essa estrutura de formato circular é definida como a jornada do herói. Joseph Campbell recapitula os estágios de a jornada do herói da seguinte maneira:

O herói mitológico [...] é atraído, levado ou se dirige voluntariamente para o limiar da aventura. Ali encontra uma presença sombria que guarda a passagem. O herói pode derrotar essa força, assim como pode fazer um acordo com ela, e penetrar com vida no reino das trevas (batalha com o irmão, batalha com o dragão; oferenda, encantamento); pode, da mesma maneira, ser morto pelo oponente e descer morto (desmembramento, crucifixão). Além do limiar, então o herói inicia uma jornada por um mundo de forças desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas, algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e obtém sua recompensa. Seu triunfo pode ser representado pela união sexual com a deusa-mãe (casamento sagrado), pelo reconhecimento por parte do pai-criador (sintonia com o pai), pela sua própria divinização (apoteose), ou, mais uma vez — se as forças tiverem se mantido hostis a ele -, pelo roubo, por parte do herói, da benção que ele foi buscar (rapto da noiva, roubo do fogo); intrinsecamente, trata-se de uma expansão da consciência e, por conseguinte, do ser (iluminação, transfiguração, libertação). O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoarem o herói, ele agora retorna sob a sua proteção (emissário); se não for esse o caso, ele empreende uma fuga e é perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos). No limiar do retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói reemerge do reino de terror (retorno, ressurreição). A benção que ele traz consigo restaura o mundo (elixir). (CAMPBELL, 2007, p. 241)

 

Frodo e a jornada do herói


A decupagem do filme foi totalmente baseada na aventura de Frodo, pois para Jackson, Frodo seria o herói, aquele que deveria passar pelas provações, salvar o mundo, e retornar renascido com o poder para mudar o seu mundo. Baseado nessa decisão do diretor, a equipe de roteiristas selecionou ponto a serem mantidos e excluídos do material original.

Como já mencionado, o grau de urgência e perigo da obra era essencial. Por isso, Jackson já inicia o filme mostrando a última guerra contra Sauron e mostrando o perigo dessa entidade. Em seguida, Jackson mostra o condado, terra de Frodo, de uma forma quase utópica, uma espécie de refúgio do mundo, um mundo “pelo qual valeria lutar”, pelas palavras de Samwise, o companheiro de Frodo. Bildo passa o anel para Frodo, e Gandalf, o mago, imaginando que se tratava do Um Anel, confirma a sua teoria e chama Frodo para ser o portador do anel até a aldeia de Bri. No primeiro momento já presenciamos a figura do arauto da aventura na figura de Gandalf. Frodo segue com seus companheiros e enfrenta o seu primeiro desafio no Topo do Vento, onde um nazgul o apunhala com uma lâmina de Morgul. Frodo praticamente morre, começa a se tornar um espectro, mas por ajuda de Aragorn e dos elfos, consegue se recuperar já em Rivendell. O filme até esse ponto (limiar da aventura) é marcado por algumas escolhas interessantes de Jackson. Primeiramente, Jackson opta por eliminar toda a longa travessia dos hobbits (incluindo Frodo) pela floresta e o encontro com Tom Bombadil. Toda essa passagem na obra de Tolkien é longa e lúdica. No filme, isso cortaria o senso de urgência da missão de Frodo.

Há uma emblemática cena que o anel parecer voluntariamente se encaixar no dedo de Frodo. Quando vestindo o anel, Frodo vê pela primeira vez o olho de Sauron, a personificação do mal e do vilão. Ainda, com Frodo vestido do anel, os nazguls foram atraídos pelo chamado do anel. Além dessa importante cena equivaler ao limiar da aventura, ela corrobora com a elevação de Frodo a herói, pois torna a sua jornada ainda mais difícil do que na obra original. Enquanto no filme, Frodo é “vencido” pelo anel, vê aquele que todos temem e graças a sua fraqueza atrai os nazguls, no livro o anel é apenas sedutor, os nazguls não possuem a capacidade de sentir dessa forma o anel (foram chamados por homens), e o olho de Sauron (o inimigo personificado) não existe.

Frodo quase morre e “renasce” em Rivendell, onde ocorre o conselho de Elrond, onde lhe é revelada toda a ameaça do anel e de Sauron. Frodo corajosamente se voluntaria para destruir o anel, indo além do limiar da aventura, a caminha de uma jornada de provações desconhecidas.

Em sua jornada, alguns momentos são destacados na trilogia de Peter Jackson, entre eles a relação com Gollum. Campbell fala de um mundo com forças desconhecidas e estranhamente íntimas, fala de forças que o ameaçariam o herói fortemente e fala de forças mágicas que o auxiliariam. Gollum representa essa força estranhamente íntima. A relação de Gollum e Frodo é interessante e complexa. Gollum é um personagem semelhante a Frodo que já foi amaldiçoado quando teve posse do Um Anel. Peter Jackson opa por mostrar Gollum vivendo em um lugar semelhante ao Condado de Frodo, tendo aparência e modo de viver semelhante. Embora Gollum desejasse o anel antes de qualquer outra coisa, Frodo se torna amigo de Gollum, tendo pena de sua situação e tentando lhe ajudar, embora estivesse sendo alertado por Sam sobre a real intenção de Gollum. Frodo então se relaciona com ele e Gollum se torna no fim a última barreira entre ele e o fim de sua jornada. A grande provação de Frodo em relação a Gollum apenas ocorreu pela intimidade e as similaridades entre os dois personagens. No entanto, em sua jornada, Frodo também contou com auxílio mágico. Isso está representado na cena em que Galadriel presenteia Frodo com a luz de Eärendil, uma “luz que iluminaria os caminhos mais escuros” em sua jornada. Nas fortes presenças de Gollum e Galadriel, os elementos campbellianos provas e auxílios mágicos estão presentes nas escolhas de Jackson.

Depois de vencer a ameaça, o herói retorna ao seu mundo. A benção que ele traz consigo restaura o mundo. Frodo destrói o anel e retorna para o Condado com a ajuda sobrenatural da águias, estando novamente quase morto, tendo tornado o mundo um lugar pacífico novamente. As forças transcendentais ficam para trás, como no monomito, tendo o herói reemergido do reino de terror.

O herói passa pela suprema provação, quando consegue destruir o anel e é recompensado de acordo com os moldes campbellianos. Na mitologia tolkieniana, a terra de Valinor seria uma espécie de paraíso, onde os seres imortais, os elfos, viveriam ao lado das criaturas primordiais. Frodo concebe a honra de ser juntar ao último navio que partiria para Valinor, se tornando imortal e vivendo ao lado dos deuses. Ocorre aqui a apoteose.


Conclusão


Como pudemos perceber, Peter Jackson usou o modelo monomítico campbelliano em sua construção de Frodo e de sua jornada. Os elementos excluídos e mantidos corroboraram sempre com a elevação de Frodo a herói. Pudemos perceber que a história dos filmes de O Senhor dos Anéis giram em torno de Frodo e da sua jornada, e o que não corroborava com essa jornada era descartado. A forma que Jackson se propôs em adaptar a obra de Tolkien é nitidamente respaldada pela teoria de Joseph Campbell, pois de fato Jackson entregou uma obra onde Frodo era o herói mítico, o microcosmo dentro do macrocosmo, aquele que iniciou e retornou de sua jornada.

Verificamos que a obra cinematográfica apresenta outras instâncias de significação e expressão artísticas, sem reduzir a complexidade, mas se apresentando de modo distinto e com seus próprios embaraços que leva o espetador a uma nova experiência.


Referências:


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Por: Gabriel da Silva Marques e Douglas Esteves Moutinho

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