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Flow (2024)

Escatologia e universalismo

 

Existem símbolos que, ao longo de diversas épocas e regiões, frequentemente assumem protagonismo em narrativas mitológicas e culturais. Essa persistência de símbolos pode ser interpretada como parte de uma herança filogenética, conceito que Joseph Campbell formulou ao desenvolver a ideia de monomito, ou a jornada do herói. De acordo com Campbell, todas as histórias arquetípicas compartilham um núcleo comum, representado pela figura do herói, sendo este um elo que conecta os diversos elementos presentes nas narrativas, funcionando como um microcosmo dentro do macrocosmo. Um dos símbolos mais recorrentes e significativos nessas narrativas é a água, frequentemente associada ao conceito de renascimento.

Flow

A teoria do monomito, desenvolvida por Campbell com base nos princípios do inconsciente coletivo de Carl Gustav Jung, identifica a água como um elemento recorrente nos mitos universais, onde frequentemente simboliza destruição, renascimento e purificação. Exemplos disso podem ser encontrados no dilúvio narrado nos mitos de Noé, Gilgamesh e Pachatira, bem como nos mitos de Ragnarök e Kali Yuga, onde a água se apresenta como um elemento essencial para o processo de regeneração do mundo. Em contrapartida, no Apocalipse cristão, onde não há espaço para o renascimento do mundo, a água é deliberadamente ausente da narrativa escatológica.

Flow

É justamente em torno desse elemento emblemático que a animação Flow se desenrola. Sem diálogos ou qualquer fala, o filme narra a história de um gato que sobrevive a uma enchente e se encontra sozinho em um mundo inundado. Durante sua jornada, o felino encontra outros animais de diversas espécies, também perdidos e em busca de sobrevivência, levando-os a colaborar mutuamente para garantir sua continuidade.

Com uma animação deslumbrante em cel-shading, o filme se destaca pela exploração do mundo submerso, que, embora engolido pela água, mantém sua identidade reconhecível por meio de paisagens e construções fantásticas. Esse é um dos principais pontos de destaque da obra. Os elementos e símbolos presentes na animação são facilmente identificáveis, mas sua união resulta em uma atmosfera onírica, intensificada pela arte da animação, pela flutuação da câmera, pela cenografia e até pela física do universo representado.

Gints Zilbalodis utiliza uma abordagem cinematográfica que evita a dependência de diálogos, privilegiando a imagem, o principal elemento do cinema. Ao se abster de textos ou vozes, o filme transcende barreiras linguísticas que, no formato convencional, seriam superadas por legendas ou dublagem, opções que muitas vezes não oferecem a mesma profundidade expressiva. Assim, o grande mérito de Flow reside precisamente na sua universalidade mitológica, cultural e linguística, ao inserir, no núcleo de sua narrativa, animais de diversas espécies e origens culturais, unidos pela luta pela sobrevivência.


  • Crítica da Animação Flow: por Douglas Esteves Moutinho

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