O Retrato do Riso no Medievo e no Cinema em O Nome da Rosa
- Douglas Moutinho
- 11 de fev.
- 19 min de leitura
Atualizado: 25 de fev.
Resumo: O presente artigo visa analisar a manifestação do riso em O Nome da Rosa, filme de Jean-Jacques Annaud baseado na obra homônima de Umberto Eco. O riso durante o medievo sofreu algumas censuras por, supostamente, afastar os homens da presença de Deus. Diante disso, a Igreja Católica utilizou de diversos artifícios para fiscalizar e punir os transgressores. Tal fato histórico, de maneira muito fiel é retratado no filme em questão, o qual será nosso objeto de análise a fim de compreender de que maneira isso foi representado nas telas de cinemas.
Palavras-chave: Idade Média; Riso; Igreja; O Nome da Rosa; Cinema.
Abstract: This article aims to analyze the manifestation of laughter in The Name of the Rose, a movie by Jean-Jacques Annaud that was based on the novel by Uberto Eco. During the medieval period, laughter was censored because it kept men away from God's presence. In view of this, the Catholic Church used many devices to control and punish the transgressors. This historical fact, in a very faithful way, is portrayed in the film in question, which will be our object of analysis to understand how this was represented on the movie screens.
Keywords: Middle Ages; Laughter; Church; The Name of the Rose; Cinema.

Considerações iniciais
O período medieval é caracterizado por sua grande diversidade cultural e histórica, e a historiografia desse período foi abordada por diferentes perspectivas, especialmente através da Escola dos Annales. Neste artigo, por questões didáticas e limitações de tempo, faremos algumas generalizações seletivas, reconhecendo que não conseguiremos abranger toda a complexidade histórica e historiográfica desde o fim político do Império Romano do Ocidente até a queda de Constantinopla em 1453, mesmo porque não é nossa meta.
Desta feita, resta claro que o riso durante o período medieval sofreu algumas censuras por motivos variados. Figura enquanto nosso objetivo, portanto, realizar uma investigação acerca da presença do riso na obra O Nome da Rosa que está ambientada no período medieval, sendo o riso elemento crucial do enredo.
Para nossa análise, selecionamos o filme O nome da Rosa, baseado no livro de mesmo nome escrito por Umberto Eco (1932-2016). Essa escolha revela-se interessante, pois o enredo retrata uma sociedade medieval na qual monges estão morrendo misteriosamente, sem uma causa aparente. Enquanto alguns atribuem os acontecimentos ao demônio, nem todos estão convencidos desta explicação. Nesse contexto, William de Baskerville é enviado ao monastério com o objetivo de solucionar o crime.
Durante o desenrolar do filme, fica evidente que as mortes são consequência de uma transgressão: a leitura do segundo livro da Poética de Aristóteles, que aborda a comédia. Considerando o contexto histórico em que a história se passa, é importante lembrar que a Igreja detinha grande poder sobre a sociedade, de forma a reprimir o riso, no entanto as camadas mais pobres, tal como os camponeses, não privavam de dar algumas boas gargalhadas quando juntos.
Em termos históricos, o livro O Nome da Rosa de Umberto Eco, lançado em 1980, pode parecer relativamente recente. No entanto, em uma sociedade como a nossa, para muitos se trata de uma narrativa antiquada. Ao discutir o tema, Jacques Le Goff nos lembra que um documento, mesmo que antigo, não se limita a ser apenas um texto ou outra forma de mídia. Ele é um produto social que carrega as ideologias da época em que foi produzido, sendo, portanto, um monumento que reflete a história de alguém. Ao analisar obras desse tipo, é possível “à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa” (LE GOFF, 1924:545).
Convém ressaltar que, na pesquisa, "nada é estanque" (SANTADE, 2014:109). Constantemente surgem novas visões, teorias e metodologias que nos levam a rever textos e filmes antigos com uma nova perspectiva.
É compreensível que possamos pensar que tudo já foi dito e repetido sobre um tema. No entanto, mesmo não realizando um trabalho bibliográfico e arquivista, o postulado de Marconi e Lakatos (2017:63) é válido e aplicável: "a pesquisa bibliográfica não é mera repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo assunto, mas propicia o exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões inovadoras". Portanto, mesmo em um contexto aparentemente saturado, é possível encontrar espaço para o desenvolvimento de artigos, dissertações ou teses que ofereçam contribuições originais e promovam uma visão renovada sobre o tema em questão.
Diante do exposto, o embasamento teórico deste artigo apoia-se nas perspectivas de Le Goff (2000), Ribeiro (2018) e Laraia (2001), que consideram o riso como um elemento cultural. Além disso, para compreender o riso como um elemento estruturante da sociedade medieval, recorremos às contribuições de Gurevich (2000) e Bakhtin (2013), que são essenciais para o desenvolvimento da reflexão proposta.
Na primeira seção, buscaremos apresentar o riso como um elemento cultural, com foco especial na Idade Média. Na segunda seção, serão abordados brevemente os aspectos relacionados à Inquisição pela Igreja Católica, com ênfase nos Cátaros, bem como serão realizadas reflexões breves sobre os Franciscanos e Dominicanos, considerando a presença de personagens dessas ordens no filme.
O riso em xeque
O riso, enquanto elemento intrínseco à estrutura social, revela-se como parte essencial do ser humano, refletindo a configuração e dinâmica da sociedade (LE GOFF, 2000). Ele representa o modus operandi da sociedade (RIBEIRO, 2018).
O riso, como uma expressão cultural, assume diversas formas em diferentes culturas (LARAIA, 2001; LE GOOF, 2016). Um exemplo disso é o caso dos índios Ka’apor, conforme ilustrado por Roque Laraia (2001): "A primeira vez que vimos um índio Ka’apor rir foi motivo de surpresa. O som emitido, extremamente alto, assemelhava-se a gritos de guerra imaginários, e a expressão facial era completamente diferente do que estávamos acostumados a ver" (LARAIA, 2001:36).
O riso, como elemento socialmente estruturado, assume diferentes manifestações em sociedades diversas e naturalmente sofre transformações ao longo do tempo. O riso na antiguidade difere do riso na Idade Média, assim como difere da contemporaneidade “De acordo com a sociedade e a época, as atitudes em relação ao riso, a maneira como é praticado, seus alvos e suas formas não são constantes, mas mutáveis. O riso é um fenômeno social” (LE GOFF, 2016: 36).
Considerando a diversidade cultural da Idade Média, não podemos afirmar que o que for mencionado aqui se aplica a toda a sociedade medieval, porém podemos afirmar que, em grande parte dela, o riso era reprimido principalmente pelos valores cristãos vigentes à época. Prova da vasta diversidade é que alguns reis da época faziam piadas, riam, os famosos rex facetus, rei-cômico; ou mesmo aqueles mais detidos que apenas riam às sextas-feiras (LE GOFF, 2016).
Além disso, é importante lembrar que o riso, enquanto prática socialmente marginalizada, era comumente associado às camadas mais pobres da sociedade medieval (Bakhtin, 2013) e a seriedade às camadas mais ricas:
Como já mencionamos, o riso na Idade Média estava relegado para fora de todas as esferas oficiais da ideologia e de todas as formas oficiais, rigorosas, da vida e do comércio humano. O riso tinha sido expurgado do culto religioso, do cerimonial feudal e estatal, da etiqueta social e de todos os gêneros da ideologia elevada. O tom sério exclusivo caracteriza a cultura medieval oficial (BAKHTIN, 2013:63).
Nesse contexto, a ausência do riso era vista como uma expressão de seriedade, uma maneira de preservar os valores conservadores e cristãos. Sob a influência da igreja, a seriedade era considerada essencial para se aproximar do divino e se distinguir das pessoas comuns (RIBEIRO, 2018). Gurevich nos ensina que a seriedade é “cultura oficial, a cultura da Igreja, a cultura dos homens cultos. Essa cultura foi caracterizada por Bakhtin como uma cultura dos agelastoi, ou seja, das pessoas que nunca riam e que até odiavam o riso” (2000:84)
Na contrapartida, existia a camada popular que vivia de forma diferente, expressando-se através de festas, brincadeiras, canções e danças, sendo a alegria um traço comum entre eles. Conforme Ribeiro (2018:214), a alegria "seria sinônimo da manifestação constante do riso, e teoricamente, rir era se colocar contrário à ordem social da Igreja Católica, que apregoava e valorizaria o indivíduo sério, por compreender na seriedade um passo importante de aproximação da salvação da alma e do corpo."
É importante lembrar dos famosos circos dos horrores, nos quais pessoas consideradas "imperfeitas" eram expostas para provocar risos do público. No contexto bíblico, alguns teóricos argumentam que o riso "foi dessacralizado e reduzido à categoria de gesto profano" (MACEDO, 2000:53). Isso ocorre porque o riso se associa às imperfeições, enquanto Deus, sendo perfeito, teria criado um mundo perfeito. O riso pode ser compreendido como o oposto de Deus. Além disso, o riso só teria surgido na história humana devido à intervenção do diabo, que, disfarçado de serpente, levou Adão e Eva a pecarem, provocando risos entre eles.
Agora, pode-se rir. Há de quê: rir do outro, desse fantoche ridículo, nu, que tem um sexo, que peida e arrota, que defeca, que se fere, que cai, que se engana, que se prejudica, que se torna feio, que envelhece e que morre –um ser humano, bolas! uma criatura decaída. O riso vai se insinuar por todas as imperfeições humanas. É uma constatação de decadência e, ao mesmo tempo, um consolo, uma conduta de compensação, para escapar ao desespero e à angústia: rir para não chorar. Eis aí o que os pais da Igreja recriminam: em lugar de chorar sobre nossa decadência, o que seria marca de arrependimento, rimos de nossas fraquezas, e essa é nossa perda. Vemos nosso nada e rimos dele: um riso diabólico (MINOIS, 2003:112-113).
Durante o período medieval, diversas regras e normas foram estabelecidas em relação ao riso (RIBEIRO, 2018). Nesse contexto, houve intensos debates em torno da figura de Deus e do diabo. Desta feita, aqueles que riam estavam ligados ao diabo, portanto, longe de Deus, isto é, não alcançariam a glória eterna, ao passo que os dotados de seriedade estavam mais próximos de Deus.
Um pouco de violência para os transgressores
Diante das heresias (Valdenses, Cátaros/Albigenses, Irmãos do livre espírito) dos séculos XII e XIII, o papado, no contexto do combate às heresias, estabeleceu uma série de procedimentos judiciais, legislativos e executórios, como manuais de confessores, manuais de inquisidores e obras sobre a arte de pregar (CALAINHO, 2019; SILVA, 2019). Um desses instrumentos criados foi a Inquisição, que tinha como objetivo identificar, julgar e aplicar penas aos hereges.
Diante disso, a Inquisição Medieval trouxe consigo uma mudança significativa no processo de abertura de um caso, pois não mais dependia da denúncia de uma vítima. Agora, as autoridades eclesiásticas podiam iniciar um processo com base em determinações próprias, muitas vezes fundamentadas em rumores ou suspeitas externas ao local de investigação.
Tais disposições colocavam o suspeito de heresia em uma posição vulnerável, sujeito a um processo sem direito à defesa, exposto à arbitrariedade dos acusadores e juízes (OHST, 2014). A Inquisição, por meio do uso frequente de violência física e psicológica, assumiu um caráter essencialmente repressivo, encarregando-se de investigar, descobrir e impor penas aos infratores. A figura da inquisição punitivista em O Nome da Rosa será representa por Bernardo Gui.
Após a quase erradicação dos hereges em 1208, surgiram as chamadas ordens mendicantes. Essas ordens acreditavam que seus membros deveriam viver entre o povo, ao invés de se recolherem em monastérios, renunciando aos luxos, riquezas e relações sexuais. Sua missão primordial era dedicar-se à caridade e ao serviço aos necessitados.
Dentre as diversas ordens existentes, duas destacam-se: a primeira, a Ordem dos Frades Menores, fundada por Francisco de Assis. Os franciscanos mendicantes seguiam fielmente os ensinamentos de seu fundador, preconizando a vida na pobreza e a renúncia à posse de bens materiais. Seu objetivo era viver de acordo com o exemplo de Jesus Cristo (imitatio Christi) e dedicar-se à conversão espiritual das pessoas (CALAINHO, 2019).
Francisco de Assis (1181/1226), filho de um rico comerciante da cidade de Assis, na Itália. Após um longo período de reflexões, em 1206 renunciou a tudo e se converteu num pedinte, abandonando toda a sua vida anterior para viver como Jesus Cristo vivera – humilde, pobre e caridoso. (CALAINHO, 2019:102).
No filme baseado no romance de Eco, o franciscano é representado pelo personagem William de Baskerville. Por outro lado, temos a Ordem dos Pregadores, qual seja a Ordem fundada por Domingos de Guzmán, que se destacara por suas fervorosas pregações, seu compromisso com o estudo ortodoxo e adoção de múltiplas regras, extremamente rigorosas por sinal. Além disso, a ordem desempenhou um papel significativo ao fornecer suporte teológico aos tribunais da Inquisição, conforme nos lembra Daniela Buono:
Finalmente, a Igreja também consagrou seu poder no Ocidente com a criação de um tribunal religioso, o Santo Ofício da Inquisição, em 1231, impondo uma grande vigilância aos fiéis. Foi dado um caráter institucional às perseguições religiosas, com instalação de tribunais presididos por juízes locais nomeados pelo papa e formação de um processo com testemunhas anônimas, sentenças e penas variadas. Em função de sua trajetória de estudo e erudição como instrumento para conversão, coube aos dominicanos a organização da Inquisição papal. (CALAINHO, 2019:103)
Um dos principais objetivos de Guzmán era combater vigorosamente as heresias – a priori – sem violência (CALAINHO, 2019), estabelecendo assim uma base sólida para a atuação de sua ordem nesse campo. Como é de conhecimento notório, o postulado por Guzmán não se sustentou por muito tempo, porquanto a Inquisição muito violentamente foi conduzida por anos "[...]a busca da confissão leva os juízes a obtê-la por meios violentos: a majestade do aparelho judiciário, a pres' são carcerária e a tortura, legalizada em 1252." (BIGET apud SILVA, 2019:109). No romance de Eco, Bernardo Gui é o representante de tal ordem.
As duas ordens, apesar de sua vida ascética, estabeleceram-se entre as pessoas comuns. O Papa Inocêncio III, que havia subido ao trono papal com 38 anos de idade (CARVALHO, 2016), reconheceu tanto a Ordem Franciscana quanto a Ordem Dominicana, em uma tentativa de exercer algum controle sobre elas.
Pelos bosques do cinema
O Nome da Rosa, dirigido por Jean-Jacques Annaud em 1986, é um filme notável ao retratar o período medieval e o quotidiano em um mosteiro do final da Idade Média. Quanto ao elenco, Sean Connery interpreta o protagonista, Willian de Baskerville, um franciscano que vai até o mosteiro investigar as mortes misteriosas, enquanto Christian Slater assume o papel de Adso de Melk, discípulo de Baskerville. Ron Perlman desempenha o personagem Salvatore, um herege que aparentemente se converteu, já Valentina Vargas é a garota que não raramente presta serviços sexuais aos membros do mosteiro, F. Murray Abraham interpreta Bernardo Gui, dominicano que está na função de um impiedoso inquisidor, Helmut Qualtinger é Remigio da Varagine e Feodor Chaliapin Jr. representa Jorg de Burgos. O filme é uma produção de língua inglesa, fruto da colaboração entre empresas cinematográficas dos Estados Unidos, Alemanha, França e Itália.
O Nome da Rosa recebeu reconhecimento significativo, sendo agraciado com o prêmio francês César na categoria de melhor filme estrangeiro. Além disso, o filme foi premiado no BAFTA de 1988, conquistando os prêmios de melhor maquiagem e caracterização, bem como o de melhor ator, conferido a Sean Connery.
Ao retratar habilmente o ambiente medieval, a trama do filme baseada no romance homônimo de Umberto Eco envolve o público em uma narrativa intrincada e cativante, explorando questões filosóficas, religiosas e políticas que permeiam o enredo. Essa notável obra cinematográfica combina um roteiro complexo, diálogos inteligentes e estimulantes, direção habilidosa e performances excepcionais, estabelecendo-se como uma contribuição marcante para o panorama do que podemos considerar como cinema de pertinência acadêmica.
Após a seleção do filme, é nosso encargo determinar a abordagem analítica a ser adotada. Como em qualquer obra cinematográfica, é possível explorar o objeto em questão por meio de diversas perspectivas. Dado que O Nome da Rosa retrata um contexto histórico específico, é relevante analisá-lo sob essa ótica. Nesse sentido, faremos uso de textos que examinam a interseção entre cinema e história, destacando-se as contribuições dos renomados autores Marc Ferro (1992) e José D'assunção Barros (2012). Tal arcabouço fornecerá fundamentos teóricos sólidos para a análise proposta, permitindo uma compreensão profunda das nuances históricas presentes no filme.
A conexão entre cinema e história remonta aos primórdios da própria arte cinematográfica. Em 1898, Boleslaw Matuszewski publicou um documento na revista Cultures, defendendo que a análise da relação entre cinema e história era um campo de estudo válido (G. M. S. "Le cinema et l'histoire: un document de 1898" in Cultures, (1): 233, 1974 apud MORETTIN, 2011:39). No entanto, foi a partir dos anos 1970 que o cinema foi reconhecido como um "objeto" e passou a ser incorporado à prática histórica no âmbito da Nova História (MORETTIN, 2011).
Destarte, Marc Ferro desempenha um papel significativo como um dos principais pioneiros nas teorias que estabelecem a conexão entre o estudo do cinema e a história. Seu livro "Cinema e História" (1992), publicado em 1977, oferece uma abordagem abrangente com teorias e análises práticas de diversos filmes, considerando seus contextos históricos e sociais. Ferro examina minuciosamente as interações entre a linguagem cinematográfica e a narrativa histórica, enriquecendo nossa compreensão das representações cinematográficas do passado.
Outro acadêmico influente é José D'Assunção Barros, que coorganizou, juntamente com Jorge Nóvoa, a obra "Cinema-História: Teoria e Representações Sociais no Cinema" (2012). Além de sua contribuição editorial, Barros dedica um capítulo dentro desse livro intitulado "Cinema e História: entre Expressões e Representações", onde levanta questões intrigantes sobre a relação entre cinema e história. Sua análise aprofundada explora os diversos modos pelos quais o cinema constrói e transmite representações históricas, oferecendo uma perspectiva única para o estudo dessa interseção entre a sétima arte e a disciplina histórica.
José D'Assunção Barros expande os estudos interdisciplinares entre cinema e história, adentrando o campo da representação, em que o filme se torna um veículo para imaginar e representar determinados temas. Ele propõe três categorias distintas nesse contexto: o filme histórico, que retrata eventos baseados em personagens historicamente verídicos; o filme de ambientação histórica, no qual personagens fictícios interagem dentro de um contexto histórico específico; e, por fim, o documentário histórico, que difere do filme histórico por sua ênfase na precisão documental e muitas vezes coloca a estética em segundo plano na construção cinematográfica.
Além dessa classificação, Barros estabelece cinco relações fundamentais entre cinema e história. Ele afirma que o filme pode funcionar como uma fonte histórica, fornecendo informações e perspectivas sobre o passado; ser um agente histórico, influenciando a forma como a história é percebida e interpretada pela sociedade; representar eventos ou momentos históricos, criando uma representação visual e narrativa desses eventos ou momentos; ser uma ferramenta para o ensino de história, permitindo que estudantes e professores explorem o passado de maneira envolvente e acessível; e servir como uma tecnologia de apoio à pesquisa histórica, fornecendo recursos audiovisuais para análise e investigação mais aprofundada. Essas múltiplas dimensões da relação entre cinema e história revelam a riqueza e a complexidade dessa interação entre as duas disciplinas.
Para a proposta análise, focaremos no escopo: o filme de ambientação histórica como representação de um momento histórico, ou seja, analisaremos o filme buscando compreender como Jean-Jacques Annaud[1] representou o momento final da Idade Média no tocante ao elemento cerne de nosso texto, o riso.
Tendo traçado essa breve introdução ao que diz respeito à relação entre cinema e história e tendo apresentado ao leitor algumas informações iniciais sobre o filme que trataremos, iremos a partir desse momento nos ater à análise cinematográfica.
O filme ilustra algumas características estilísticas e temáticas do seu diretor, Jean-Jacques Annaud, principalmente no que concerne à forma de se relacionar com a natureza, apresentada nesse caso com a presença de alguns animais e com o próprio cenário selecionado para a realização do filme, inclusive na escolha pela presença de alguns fenômenos naturais, a saber a neblina, que estabelece uma função dramática na narrativa. Além dos elementos da natureza, outra característica do estilo de decupagem de Jean-Jacques Annaud é a preferência conteudista, em detrimento do formalismo.
Nesse sentido, a preferência pelo conteúdo estabelece um paralelo com a própria estética medieval, na qual santos e anjos são dispostos de maneira a preencher uma tela, sem que o artista se preocupe em elaborar formas intricadas para transmitir mensagens subliminares nas entrelinhas das pinturas. Essa agregação de elementos formais, assim como autorais, teve origem no Renascimento, rompendo com o que se conhece como a arte medieval. Em outras palavras, Jean-Jacques Annaud abdica de uma estética mais autoral para realmente mostrar tudo o que precisa ser mostrado. Cada plano é meticulosamente concebido para expor aquilo que o diretor deseja apresentar, aquilo que ele considera relevante, sem permitir que o espectador se perca na exposição do universo cinematográfico que é apresentado.
Curiosamente, Jean-Jacques Annaud poderia ter utilizado uma edição mais dinâmica e enquadramentos mais fechados, o que provocaria uma sensação de deslocamento no espectador, assim como os próprios personagens, por meio de uma cuidadosa decupagem, na qual a mise-en-scène estaria em harmonia com a narrativa. No entanto, o cineasta opta por uma estética mais sóbria e expositiva, a fim de aprofundar a exploração de elementos culturais que poderiam ser negligenciados dentro da unidade estilística mencionada.
Como mencionado anteriormente, a presença da natureza estabelece um elemento marcante na estética do diretor, ao mesmo tempo em que se torna um elemento agregador para a dramaticidade da obra cinematográfica. A névoa que paira sobre o mosteiro ao longo de todo o filme parece se fundir com as paredes, isolando-o do mundo exterior. Seria o mosteiro um mundo à parte da realidade? Seria a atenção dada ao riso uma questão intrínseca ao clero e sem importância para o povo comum? Todas as escolhas de cenários abertos no filme reforçam essa percepção. O pecado inerente ao riso seria, então, uma problemática ligado aos questionamentos do clero, sendo algo indiferente para a plebe.
A interação entre a natureza e o riso dos camponeses e monges encontra expressão em três cenas distintas que merecem destaque: a primeira delas ocorre quando o monge Venantius, oculto em um ambiente completamente escuro, está imerso na leitura do segundo livro da Poética de Aristóteles, que trata da comédia. Em meio ao seu deleite, ele ri discretamente. No entanto, repentinamente, um rato passa produzindo um ruído, o que o faz assustar-se, interrompendo subitamente seu riso e tomando consciência de que seu comportamento não estava de acordo com o ideal de santidade que lhe era esperado; a segunda cena que ilustra a conexão entre a natureza e o riso envolve novamente a presença de um rato, mas vamos explorar essa cena de forma mais profunda a seguir.
Outrossim, a terceira cena está intrinsecamente relacionada à primeira. No momento que Adso deixa os limites do mosteiro em busca da garota com quem teve um envolvimento, o jovem depara-se com uma casa em que ela está acompanhada por outros camponeses. O rapaz observa secretamente através de um buraco, enquanto os moradores e convidados estão descansando, comendo e bebendo, ou seja, em total tranquilidade.
Em um momento inusitado, uma galinha defeca sobre o rosto de um idoso que estava deitado. Ele se enfurece, e todos riem efusivamente. A câmera parece reagir à mudança de ambiente, capturando rostos radiantes por meio de enquadramentos mais fechados, enquanto cortes rápidos alternam entre os rostos sorridentes e a expressão alarmada e atônita de Adso, que foge do local aterrorizado.
A cena que foi mencionada anteriormente inicia-sse com a entrada de William e Adso no scriptorium, onde os dois personagens sobem a escadaria que leva ao salão. A câmera acompanha sua progressão, revelando gradualmente a amplidão do local através de planos variados, aproximando-se, afastando-se, movendo-se em travelling, alternando entre a estaticidade e a fluidez proporcionada pela steadicam.
Ao chegar lá, William solicita ver os últimos livros nos quais os dois falecidos estavam trabalhando. O bibliotecário reluta, mas acaba cedendo. William examina os manuscritos e percebe humor nas iluminuras feitas pelos mortos: o abade representado como um macaco e o papa como uma raposa. Subitamente, um grito em off interrompe a cena, quando um monge fica em cima de uma cadeira, gritando por causa de um rato no chão.
Devemos lembrar que “O riso é o jeito mais horrível e mais obsceno de quebrar o silêncio. Em relação a esse silêncio monástico, que é uma virtude existencial fundamental, o riso é uma violação gravíssima” (LE GOFF, 2016:40). Tal violação causada pela presença de um simples rato é prontamente objeto de censura.
Os outros monges que estavam trabalhando começam a gargalhar. Em um corte brusco, vemos um vaso sendo quebrado e o venerável Jorg inicia uma fala marcante, afirmando que um monge não deve rir, pois apenas tolos riem. Surge um diálogo entre William e Jorg sobre o riso e sua relação com figuras religiosas, mencionando São Francisco, Jesus e São Mauro. William argumenta que o riso não é tão errado, enquanto Jorg afirma que o riso aproxima os homens de macacos e é uma artimanha diabólica.
Durante essa cena, observam-se cortes rápidos, mostrando os monges atentos à retórica dos personagens, confusos e temerosos de estarem errados. Talvez buscassem no íntimo uma vida mais leve, representada por William, o franciscano. Essa situação reforça a aparência caricata dos personagens do filme, aparentando estarem enlouquecidos por viverem sem a possibilidade de descontrair com o riso.
Na parte final do filme, ocorre uma cena que merece destaque. William e Adso adentram a biblioteca, um espaço desconhecido, em busca do segundo livro da Poética de Aristóteles. Conscientes de estarem perdidos em uma torre labiríntica, o espectador presencia mais um diálogo entre William e Jorg, sempre representando, respectivamente, o defensor e o opositor ao riso. O ambiente em forma de labirinto é uma metáfora para o terreno confuso do debate em questão.
Ao encontrar Jorge com o livro em mãos, William protege-se ao vestir sua luva, pois sabe que as páginas estão impregnadas com o veneno que matou os outros monges, cujas línguas e pontas dos dedos ficaram negras. Com a luva de proteção, William lê uma passagem que ressalta como a comédia desperta prazer ao expor os defeitos de pessoas comuns e ridicularizá-las. A cor preta presente nas línguas e dedos dos mortos, além de estarem ligadas naturalmente à narrativa, pois Jorg havia impregnado as páginas com veneno, também possui um valor metafórico, representando uma pessoa que aponta com o dedo para alguém ridículo e depois utiliza a sua boca para fazer piadas sobre ela.
Considerações Finais
Em síntese, Jean-Jacques Annaud consegue criar um filme deslumbrante ao retratar de forma precisa um momento histórico específico: a Idade Média do início do século XIV. Embora o mérito não seja exclusivamente do diretor, uma vez que o enredo e a ambientação literária foram criados por Umberto Eco, os elementos adicionados ao filme enriqueceram ainda mais a obra cinematográfica. De maneira extremamente coerente, conceitos fundamentais discutidos nas primeiras páginas deste artigo foram habilmente incorporados à trama, sem prejudicar o desenvolvimento da história investigativa. Ao ser analisada à luz da perspectiva apresentada pelo professor José D'assunção Barros, que enfoca o filme como uma representação histórica, o filme desempenha com maestria um dos seus propósitos, que é inserir o espectador no universo de questionamento em relação ao riso no medievo.
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Por: Douglas Esteves Moutinho e Gabriel Felipe da Silva
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM: O retrato do riso no medievo e no cinema em O nome da rosa | Medievalis
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